Um Decreto-Lei contra a Caça maior (Revista CCC)
Alterando uma simples alínea, o Governo podia ter reforçado a ética e as boas práticas na caça maior, aumentado a segurança no seu exercício e melhorado a sua fiscalização. O Decreto-lei nº 71-2024 contraria a ética, favorece atropelos na caça maior com utilização de miras térmicas, põe em causa a integridade física das pessoas e torna mais perigosa a missão do Sepna.
A recente publicação pela Secretaria de Estado das Florestas do Decreto-lei nº 71/2024 teve o objectivo de reforçar o controlo das populações de javalis através de uma alteração pontual ao artigo 88º do Decreto-Lei nº 202/2004 - que regula o exercício da caça nocturna às espécies de caça maior - permitindo a caça de espera aos javalis todas as noites do ano em vez de unicamente no período de lua cheia, como sucedia até agora.
1 - De noite, a caça aos javalis tem sido tradicional e culturalmente efectuada pelo processo de espera no período de lua cheia. Apesar disso, pareceu-nos desde o início razoável alargar o período da caça de espera aos javalis por forma a minimizar os riscos da ocorrência da peste suína africana (PSA) - embora apenas enquanto durar este risco, e apenas com essa finalidade.
A caça dos javalis pelo processo de espera é uma forma apropriada e segura de garantir os abates adicionais que as circunstâncias recomendam. Pelo contrário, é totalmente inapropriado e muito pouco seguro permitir legalmente a caça nocturna de aproximação aos javalis, que se pratica utilizando meios e processos pouco recomendáveis.
2 - Mas o grande problema que resulta do novo artigo 88º é que ele mantem a possibilidade da caça de aproximação aos cervídeos de noite, da qual discordamos frontalmente. Lamentamos profundamente que esta possibilidade não tenha sido revogada, porque em todo o mundo a caça ética de aproximação aos cervídeos (veados, gamos, corços) efectua-se de dia, não de noite. Só em Portugal a legislação permite a caça nocturna de aproximação aos cervídeos, que se pratica semi-furtivamente e utilizando meios e processos pouco recomendáveis.
Sabemos que as aproximações diurnas obrigam muitas vezes, no seu início, a uma deslocação prévia para o terreno antes do nascer do sol, e, no seu final, no regresso, a uma deslocação depois do sol posto. Mas para isso não é necessário permitir a caça toda a noite, basta permitir que, além de ser exercida durante todo o dia, o possa também ser uma hora antes do nascer do Sol e uma hora depois do pôr do sol.
3 - Para tentarem justificar a sua concordância com a caça nocturna de aproximação aos cervídeos, alguns usaram o cândido argumento de que o novo Decreto-lei não trazia nada de novo nem mudava nada do que já existia - o que é formalmente verdade. Ouvimo-lo a muita gente. Até uma OSC dita de 1º nível o fez com enorme e incontida satisfação - fazendo recordar aqueles que invocam a fuga aos impostos por parte de outros para tentarem legitimar a sua própria fuga aos impostos, ou a prática de crimes por parte dos outros para tentarem justificar os crimes que eles próprios cometem.
Esta falaciosa justificação não pode servir de pretexto ou de justificação para legitimar algo de errado que já exista, e muito menos justificar a continuação da prática desse erro. Pelo contrário, a detecção de uma circunstância indesejável ou de uma prática inapropriada é razão obrigatória para alterar os erros e repor a normalidade. É por isto que consideramos lamentável não ter sido revogada a possibilidade de se caçarem animais de caça maior de noite pelo processo de aproximação, um erro de que os seus autores e simpatizantes se poderão vir a arrepender no futuro. Esperamos que o Governo reverta rapidamente este erro, antes que ocorra uma desgraça mortal que depois todos chorarão e que - ninguém tenha dúvidas - comprometerá irreversivelmente a Caça perante a Sociedade.
4 - Acresce ainda que a possibilidade de se poder caçar legalmente de aproximação toda a noite em todo o lado, com miras térmicas e moderadores de som só aproveita aos transgressores e aos furtivos que, se até agora já andavam mais ou menos à vontade, a partir de agora vão passar a andar completamente “à vontadinha”. E constitui um enorme perigo para a segurança de pessoas e bens, pois as consequências de um tiro de carabina de noite na caça dita de aproximação podem ser fatais a largas distâncias.
Para aqueles que argumentam falaciosamente que o Decreto-Lei nº 202/2004 já permite a caça de aproximação nocturna desde 2004, é preciso recordar-lhes que nessa altura ninguém caçava de noite pela simples razão de que ninguém conseguia ver de noite para o efeito - nessa altura ainda não existiam as malfadadas miras térmicas para visão nocturna que actualmente fazem as delícias dos furtivos e dos comerciantes clandestinos de carne de caça abatida furtivamente de noite em propriedade alheia.
5 - O SEPNA é o maior aliado do caçador responsável e cumpridor, cabendo-lhe a fiscalização do cumprimento da Lei, a qual tem sido muito difícil porque são muitas as carências em recursos materiais e humanos. Os homens são poucos, as áreas a patrulhar são imensas e as patrulhas são escassas. Estamos-lhes gratos porque até agora, “fazendo das tripas coração”, têm cumprido a sua missão como podem.
Mas diga-me, caro leitor: sendo completamente legitimado o exercício da caça nocturna a animais de caça maior com a possibilidade de utilização de miras térmicas - e não esquecendo que os moderadores de som são um magnifico auxiliar das miras térmicas em mãos criminosas - como é que doravante os homens do SEPNA, que também são casados e pais de filhos, não pensarão compreensivelmente duas vezes (ou mais) antes de se embrenharem de noite no campo ou no meio do mato em perseguição de furtivos?
O aumento dos riscos físicos para os agentes do SEPNA vai inevitavelmente ter como consequência aquilo que no futebol se chama o “benefício do infractor “- no final saem beneficiados os abusadores e os furtivos, e irão ser prejudicados os caçadores cumpridores. Por maioria de razão, também aqui esperamos que não ocorra nenhuma fatalidade, em relação à qual todos depois se interrogarão como foi possível.
6 - Uma circunstância a exigir intervenção urgente por parte da tutela é a quase absoluta complacência na concessão de selos de caça maior, e na ainda existência da circulação de selos emitidos antes da operacionalização da plataforma RUBUS do ICNF. Até parece que alguns responsáveis não aprenderam nada com o que sucedeu com os selos há anos na Torrebela.
A facilidade com que os selos são hoje atribuídos de forma quase automática a quem os solicita é absolutamente contrária às boas práticas de uma correcta gestão cinegética da caça maior, que exigem controlo, dimensão e áreas totalmente incompatíveis com a diminuição gradual das áreas das zonas de caça que vêm sendo autorizadas. Não é exagero dizer-se que qualquer dia um quintalinho será uma Zona de caça onde o respectivo proprietário pode lá caçar pelo processo de espera e aproveitar para fazer o “controlo das densidades” … dos vizinhos.
Enquanto os Censos de caça maior não forem prática corrente, regular e monitorizada nas zonas de caça, os selos deveriam ser atribuídos apenas em função da área de cada zona de caça, e não em função de critérios e decisões que só beneficiam os abusadores e os furtivos. Os selos atribuídos a uma zona de caça de 40 ha - sim, existem - com uma espécie cinegética autorizada não podem ser os mesmos atribuídos a outra com 500 ha com múltiplas espécies. O número de selos atribuídos a cada zona de caça deve ser público e escrutinável na plataforma Rubus.
Em última análise, tudo isto também compromete a eficaz fiscalização da caça por parte do SEPNA. É comum as patrulhas detectarem situações de aparentes e flagrantes ilegalidades cuja confirmação esbarra na existência de selos anteriores à plataforma Rubus, ou que não batem certo com a área das rerspectivas zonas de caça. O que se espera para pôr cobro a esta situação?
7 - Registamos também o silêncio quanto a este Decreto-lei por parte de duas das OSC´s ditas de 1º nível, e a entusiástica concordância por parte de uma terceira. Os caçadores portugueses têm que ter consciência que as três OSC ditas de 1º nível não querem a mudança da situação actual nem aceitam alterações ao Decreto-lei nº 202/ 2004 que mudem a Caça para melhor.
A actual situação chegou ao cúmulo de, numa reunião recentemente ocorrida em Santarém convocada pela tutela com a presença de algumas entidades terceiras que se queixam dos prejuízos dos javalis, uma destas ter pedido publicamente para serem os militares a matar javalis porque alegadamente os caçadores não conseguiam resolver o problema dos alegados prejuízos. Nada disto é lógico. Nada disto defende uma caça sustentável. Nada disto melhora a imagem dos caçadores perante a Sociedade.
Como defender a Caça como uma actividade de ecossistema a benefício dos territórios quando as três OSC ditas de 1º nível acham normal caçar-se de noite a javalis, cervídeos e muflões pelo processo de aproximação? Como defender uma Caça sustentável quando a Lei permite aproximações sem ética nem responsabilidade que pôem em causa a vida de homens ou mulheres civis e militares no campo durante a noite?
No estado actual das coisas, os caçadores portugueses têm de sair da sua zona de conforto e exigir reformas de fundo urgentes, que defendam a Caça e a actividade cinegética. Caso não o façam, apenas sobrarão as espécies criadas em cativeiro, no que se refere à caça menor, e os animais introduzidos em “cercões”, no que se refere à caça maior - que apenas beneficiarão os mais abastados. É isto que queremos para a Caça cinquenta anos após o 25 de Abril? Um deserto cinegético para a imensa maioria, e uma caça elitista apenas ao alcance de poucos? Que atestado de menoridade se está a tentar passar aos caçadores portugueses?
8 - Pelo caminho que leva, tudo indica que a Caça vai continuar doente. Os Governos ignoram o seu valor económico e social. Os modelos legais de exercício e de gestão não mudam há 38 anos, são os mesmos da Lei de 1986. A transparência é cada vez menor. As ilegalidades cometidas em Zonas de caça associativas e municipais são conhecidas de todos. O furtivismo associado à caça nocturna com miras térmicas e moderadores de som é um flagelo. A economia resultante da actividade da caça é proibida nas zonas de caça associativa, que ocupam um terço do território nacional. A carne de caça portuguesa apenas aproveita à indústria espanhola. O regime de representação dos caçadores é uma enorme mentira. A Caça deixou de ser pensada. O Conselho Nacional da Caça não reúne desde Abril de 2021.
O CPM tudo tem feito ao longo dos anos para alterar este estado de coisas. Infelizmente, os nossos esforços têm esbarrado numa visão passadista da Caça avessa a quaisquer reformas por parte de alguns “velhos do Restelo” de nível 1, que preferem a lógica egoísta das suas “quintinhas” à visão progressista das reformas. E também na falta de coragem dos Governos para ignorarem as pressões dos interesses corporativos e tomarem as decisões que o interesse do mundo rural e do país impõe.
O CPM recusa-se a aceitar o actual estado de coisas. A mudança exige uma alteração profunda do diploma regulador do exercício da Caça, mas só será possível quando os caçadores portugueses abrirem os olhos e separarem o trigo do joio. Pela nossa parte, nunca desistiremos. Como diz a Trova, …” há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não” …
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